Agora, no fim da vida como mendigo que sou, me sinto preocupado, intrigado e num
momento embaraçado me pergunto,
se faço ou não testamento.
Não tendo, como não tenho e nunca tive ninguém,
pra quem é que eu vou deixar tudo o que
eu tenho: os meus bens?
Se eu fizer um testamento pra quem é que
vou deixar minha camisa rasgada, as
águas dos rios, dos lagos, águas
correntes, paradas, onde
às vezes tomo banho?
Pra quem é que vou deixar, se fizer um testamento,
vaga-lumes que em rebanhos cercam meu corpo
de noite, quando o verão é chegado?
Pra quem é que vou deixar, se fizer um testamento,
os meus bandos de pardais, que ao entardecer,
nas árvores, brincando de esconde-esconde,
procuram se divertir?
Pra quem é que eu vou deixar estas folhas de
jornais que uso para me cobrir?
Se eu fizer um testamento pra quem é que eu vou
deixar meu chapéu todo amassado onde escuto
o tilintar das moedas que me dão, os que têm a
alma boa, os que têm bom coração?
E antes que a vida me largue, pra quem é que
eu vou deixar o grande estoque que tenho
das palavras "Deus lhe pague"?
Pra quem é que eu vou deixar, se fizer um testamento,
todas as folhas de outono que trazidas pelo vento
vêm meus pés atapetar?
Se eu fizer um testamento pra quem é que vou deixar
minhas sandálias furadas, que pisaram mil caminhos,
cheias dos pós das estradas, estradas por onde
andei em andanças vagabundas?
Pra quem é que eu vou deixar minhas saudades
profundas dos sonhos que não sonhei?
Pra quem eu vou deixar, se fizer um testamento,
os bancos dos meus jardins, onde durmo e onde
acordo entre rosas e jasmins?
Pra quem é que vou deixar, todos os raios de luar
que beijam minhas mãos quando num
canto de rua eu as ergo em oração?
Se eu fizer um testamento pra quem é que vou deixar
meu cajado, meu farnel, e a marca deste beijo
que uma criança deixou em meu rosto
perguntando se eu era Papai Noel?
Pra quem é que eu vou deixar, se fizer um testamento,
este pedaço de trapo que no lixo eu encontrei e que
transformei em lenço para enxugar minhas
lágrimas quando fingi que chorei?
Se eu fizer um testamento, testamento então farei
sem nenhum papel passado, porque papéis eu
não ligo, e agora estou resolvido:
o que tenho deixarei, na situação em que estou,
pra qualquer outro mendigo, rogando a Deus
que o faça, depois que eu tiver morrido,
ser tão feliz quanto eu sou.
...reflitam